segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Hoje conheci um homem. Jose Antonio Pellegrino.



A carruagem ia livre mas perguntou-me se pudia sentar-se. Não o percebi numa pronúncia espanhola mastigada, apenas entendi o que queria dizer quando olhei nos seu olhos azuis cravados num rosto curtido pelo sol com vincos que só um homem sofrido pode ter. E depois de pousar a sua mochila de tropa gasta sentou-se.  Pensei: personagem estranho… talvez vá ter de mudar de lugar no comboio como faço várias vezes sempre que o meu silêncio parece incomodar os presentes.
A Viagem por África estava a correr bem. Eu estava na Tanzânia com Theroux, a caminho do Malawi a ver o mato verde e as cores do pôr-do-sol. A minha viagem parou. Fiquei na fronteira.
O homem vagabundo de tez escura e enrugada senta-se. O odor incomoda-me e quando penso em levantar-me e trocar de lugar não o fiz. Cacia incomoda-me e eu acobardo-me à sua passagem e existência. Pensei novamente: este homem é estranho. E passados alguns instantes depois de se ter sentado pareceu inquieto como quando temos um segredo para contar e estamos à espera de um momento oportuno para o fazer ou que alguém nos pergunte o que se passa.
- Esse livro é teu?- pergunta num espanhol mastigado.
- Sim.- digo sem o mínimo interesse em continuar aquela conversa que me deixou no mato verde ao pôr-do-sol.
- Sobre o que é?- pergunta o homem curioso e a jeito de meter conversa.
Levanto o livro já perdida nas linhas e viro a capa para ele.
- Viagem por África- digo.
- Eu conheço África.- diz o homem sempre com um sorriso de quem não tem nada, nem ninguém à espera.
- Eu não.- respondo  com um lamento e com uma vergonha interior de quem só conhece o Mundo através dos livros e das enciclopédias geográficas, uma vergonha invejosa de um homem dos seus 60 anos que anda de mochila velha às costas.
Pensei novamente: personagem estranho…
Procurei  na sua pele sinais de tatuagens de alguma guerra colonial em África mas não encontrei. Voltei à Viagem por África com o solitário Theroux ainda à espera de ouvir façanhas de ex-militar do velho Continente. Mas nada. Nada do que estava à espera aconteceu. A previsibilidade não era uma caraterística daquele homem de pele velha mas olhar vivo e face sorridente.
Ele parecia saber algo que eu não sabia. Algo que eu provavelmente nunca viria a saber mas com olhar doce e palavras fáceis olhou para mim com humildade e contou-me a sua história.
Para além da mochila velha trazia consigo o passaporte carregado de carimbos coloridos, a única coisa que inicialmente me chamou à atenção e que me fez levantar os olhos do livro. Pensei: um sem-abrigo com um passaporte? Repleto de carimbos? Não pode ser. Personagem estranho…  Aqueles carimbos eram prova de um conhecimento da vida, das pessoas e do mundo. E quem seria aquele homem de olhos azuis, pele castigada pelo sol e pronúncia mastigada?
Inclinou-se sobre mim e pousou no meu colo uma capa velha cheia de recortes de jornais convidando-me a conhecer a sua história. Recortes de jornais de todo o mundo metidos aleatoriamente em capas de plástico transparente. Li um espanhol. Havia em italiano e numa língua qualquer nórdica ou de leste que eu não consegui perceber qual era. Mas antes de ler o artigo preocupei-me em analisar a foto. A criatura que se encontrava à minha frente era o mesmo da fotografia do jornal.
Começo a ler a notícia e percebo que o homem não tira os olhos de mim à espera que eu tenha uma reação. Sinto-me incomodada  mas leio devagar. Aos poucos e em espanhol avanço na história e percebo que aquele homem é um peregrino que já fez quase 100 mil kilometros por este mundo fora. Na sua grande maioria a pé.
Jose Antonio fazia parte da tripulação de um navio bacalhoeiro que navegava no Cabo Norte nas águas da Noruega. O navio afundou-se dia 1 de Janeiro de 1999. Ele foi o único sobrevivente. Depois de ver os seus companheiros morrerem agarrou-se a 2 dos corpos e esperou 9 horas nas águas geladas à espera de um milagre. La Virgen del Carmen foi a sua confidente. Prometeu-lhe que se escapasse com vida ia caminhar por este mundo fora à procura de todos os locais sagrados onde pudesse agradecer pela sua vida. Entretanto chegou um helicópetro que o salvou.
A recuperação foi difícil, o congelamento tornou-o inerte. Uma cama, uma cadeira de rodas e umas muletas foram durante muito tempo a sua prisão. Os médicos disseram que não tornaria a andar. Hoje caminha bem. Sempre de botas nos pés.
José “Pellegrino” prometeu e cumpriu. Há uma década que é peregrino.
- Para onde vais?- perguntei
- Para Santiago- respondeu.
- E depois?- insisti.
- Para casa, Puerto de Santa Maria, Cádiz.- disse
- O que pensa a tua família desta tua opção?- pareceu-me pertinente saber se este solitário ainda teria alguém à espera dele…
- Orgulho.- diz.
- Tenho dois netos.- afirma entusiasmado.
E na mesma capa onde guarda os recortes dos jornais em que foi notícia mostra-me as fotografias da família. A filha e os dois netos pequenos, um ainda bebé.
Em momento algum se apresentou. Em momento algum se gabou que já tinha estado com João Paulo II e com o Dalai Lama. Só disse que caminhava por esse mundo fora e a sua capa de viagem e de vida disse-me o resto. Pareceu-me haver uma necessidade de Pellegrino provar que realmente é aquele homem. Os outros parecem ser importantes para ele.
Hoje entrou no comboio em Aveiro e queria ir até ao Porto e daí seguir caminhando para Santiago. Mas o dinheiro ou neste caso a falta dele só deu para comprar um bilhete até Espinho.
- Ontem não comi nada.- afirma. Tive uns problemas com um padre em Aveiro que não me ajudou. Os padres não têm fé. Ninguém ajuda ninguém. - afirma visivelmente irritado.
Nada comentei e deixei-o falar.
- Gosto de comer pão. Muitas vezes só como pão.- afirma.
Estamos quase na estação de Espinho. Ele levanta-se para colocar a capa da sua vida na mochila.
Abro a carteira e tiro de lá um pacote de leite. Não tenho mais nada. Dou-lho. Ele não aceita. Insisto. Ele diz que o leite lhe faz mal ao estômago. Acredito.
- Pão. Só como pão.- repete.
E mostra-me uma moeda de 50 cent que já tem guardada no bolso para fazer a sua refeição.
Estação de Espinho. Levanta-se e coloca a pesada e velha mochila às costas.
- Boa leitura.- diz com ar sincero.
- Boa viagem.- desejo-lhe.
Sai do comboio com a concha de Santiago nas costas e com mais um caminho nos pés. E eu sigo viagem para a África Oriental com mais um caminho na minha imaginação.