A carruagem
ia livre mas perguntou-me se pudia sentar-se. Não o percebi numa pronúncia
espanhola mastigada, apenas entendi o que queria dizer quando olhei nos seu
olhos azuis cravados num rosto curtido pelo sol com vincos que só um homem
sofrido pode ter. E depois de pousar a sua mochila de tropa gasta sentou-se. Pensei: personagem estranho… talvez vá ter de
mudar de lugar no comboio como faço várias vezes sempre que o meu silêncio
parece incomodar os presentes.
A Viagem por
África estava a correr bem. Eu estava na Tanzânia com Theroux, a caminho do
Malawi a ver o mato verde e as cores do pôr-do-sol. A minha viagem parou.
Fiquei na fronteira.
O homem
vagabundo de tez escura e enrugada senta-se. O odor incomoda-me e quando penso
em levantar-me e trocar de lugar não o fiz. Cacia incomoda-me e eu acobardo-me
à sua passagem e existência. Pensei novamente: este homem é estranho. E
passados alguns instantes depois de se ter sentado pareceu inquieto como quando
temos um segredo para contar e estamos à espera de um momento oportuno para o
fazer ou que alguém nos pergunte o que se passa.
- Esse livro
é teu?- pergunta num espanhol mastigado.
- Sim.- digo sem
o mínimo interesse em continuar aquela conversa que me deixou no mato verde ao
pôr-do-sol.
- Sobre o que
é?- pergunta o homem curioso e a jeito de meter conversa.
Levanto o
livro já perdida nas linhas e viro a capa para ele.
- Viagem por
África- digo.
- Eu conheço
África.- diz o homem sempre com um sorriso de quem não tem nada, nem ninguém à
espera.
- Eu não.-
respondo com um lamento e com uma
vergonha interior de quem só conhece o Mundo através dos livros e das
enciclopédias geográficas, uma vergonha invejosa de um homem dos seus 60 anos que
anda de mochila velha às costas.
Pensei
novamente: personagem estranho…
Procurei na sua pele sinais de tatuagens de alguma
guerra colonial em África mas não encontrei. Voltei à Viagem por África com o
solitário Theroux ainda à espera de ouvir façanhas de ex-militar do velho Continente.
Mas nada. Nada do que estava à espera aconteceu. A previsibilidade não era uma
caraterística daquele homem de pele velha mas olhar vivo e face sorridente.
Ele parecia
saber algo que eu não sabia. Algo que eu provavelmente nunca viria a saber mas
com olhar doce e palavras fáceis olhou para mim com humildade e contou-me a sua
história.
Para além da
mochila velha trazia consigo o passaporte carregado de carimbos coloridos, a
única coisa que inicialmente me chamou à atenção e que me fez levantar os olhos
do livro. Pensei: um sem-abrigo com um passaporte? Repleto de carimbos? Não
pode ser. Personagem estranho… Aqueles
carimbos eram prova de um conhecimento da vida, das pessoas e do mundo. E quem
seria aquele homem de olhos azuis, pele castigada pelo sol e pronúncia
mastigada?
Inclinou-se
sobre mim e pousou no meu colo uma capa velha cheia de recortes de jornais
convidando-me a conhecer a sua história. Recortes de jornais de todo o mundo
metidos aleatoriamente em capas de plástico transparente. Li um espanhol. Havia
em italiano e numa língua qualquer nórdica ou de leste que eu não consegui
perceber qual era. Mas antes de ler o artigo preocupei-me em analisar a foto. A
criatura que se encontrava à minha frente era o mesmo da fotografia do jornal.
Começo a ler
a notícia e percebo que o homem não tira os olhos de mim à espera que eu tenha
uma reação. Sinto-me incomodada mas leio
devagar. Aos poucos e em espanhol avanço na história e percebo que aquele homem
é um peregrino que já fez quase 100 mil kilometros por este mundo fora. Na sua
grande maioria a pé.
Jose Antonio
fazia parte da tripulação de um navio bacalhoeiro que navegava no Cabo Norte
nas águas da Noruega. O navio afundou-se dia 1 de Janeiro de 1999. Ele foi o
único sobrevivente. Depois de ver os seus companheiros morrerem agarrou-se a 2
dos corpos e esperou 9 horas nas águas geladas à espera de um milagre. La
Virgen del Carmen foi a sua confidente. Prometeu-lhe que se escapasse com vida
ia caminhar por este mundo fora à procura de todos os locais sagrados onde
pudesse agradecer pela sua vida. Entretanto chegou um helicópetro que o salvou.
A recuperação
foi difícil, o congelamento tornou-o inerte. Uma cama, uma cadeira de rodas e
umas muletas foram durante muito tempo a sua prisão. Os médicos disseram que
não tornaria a andar. Hoje caminha bem. Sempre de botas nos pés.
José
“Pellegrino” prometeu e cumpriu. Há uma década que é peregrino.
- Para onde
vais?- perguntei
- Para
Santiago- respondeu.
- E depois?-
insisti.
- Para casa,
Puerto de Santa Maria, Cádiz.- disse
- O que pensa
a tua família desta tua opção?- pareceu-me pertinente saber se este solitário
ainda teria alguém à espera dele…
- Orgulho.-
diz.
- Tenho dois
netos.- afirma entusiasmado.
E na mesma
capa onde guarda os recortes dos jornais em que foi notícia mostra-me as
fotografias da família. A filha e os dois netos pequenos, um ainda bebé.
Em momento
algum se apresentou. Em momento algum se gabou que já tinha estado com João
Paulo II e com o Dalai Lama. Só disse que caminhava por esse mundo fora e a sua
capa de viagem e de vida disse-me o resto. Pareceu-me haver uma necessidade de
Pellegrino provar que realmente é aquele homem. Os outros parecem ser
importantes para ele.
Hoje entrou
no comboio em Aveiro e queria ir até ao Porto e daí seguir caminhando para
Santiago. Mas o dinheiro ou neste caso a falta dele só deu para comprar um
bilhete até Espinho.
- Ontem não
comi nada.- afirma. Tive uns problemas com um padre em Aveiro que não me
ajudou. Os padres não têm fé. Ninguém ajuda ninguém. - afirma visivelmente
irritado.
Nada comentei
e deixei-o falar.
- Gosto de
comer pão. Muitas vezes só como pão.- afirma.
Estamos quase
na estação de Espinho. Ele levanta-se para colocar a capa da sua vida na
mochila.
Abro a
carteira e tiro de lá um pacote de leite. Não tenho mais nada. Dou-lho. Ele não
aceita. Insisto. Ele diz que o leite lhe faz mal ao estômago. Acredito.
- Pão. Só
como pão.- repete.
E mostra-me
uma moeda de 50 cent que já tem guardada no bolso para fazer a sua refeição.
Estação de
Espinho. Levanta-se e coloca a pesada e velha mochila às costas.
- Boa
leitura.- diz com ar sincero.
- Boa
viagem.- desejo-lhe.
Sai do
comboio com a concha de Santiago nas costas e com mais um caminho nos pés. E eu
sigo viagem para a África Oriental com mais um caminho na minha imaginação.
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